O que é o “Marco Militar” na Rota do Enxaimel?

Faz parte do folclore local do bairro a existência de um misterioso marco no cume de um dos morros que dividem Pomerode e Jaraguá do Sul, conhecido entre os moradores como Marco Militar.
Segundo a tradição oral do bairro, teria sido instalado pelo exército no morro conhecido como Hintenberg ou Felsenberg há muitas décadas, mas não encontramos ninguém que soubesse de mais informações acerca da data ou de seu propósito.

Topo do Hintenberg ou Felsenberg

Fizemos uma pequena excursão em março de 2025, na tentativa de encontrar e investigar tal marcação.
O local é acessado por uma trilha fechada que se inicia em propriedade particular, no final da rua Ribeirão Domingos.

OBSERVAÇÃO: NÃO É PERMITIDA A ENTRADA NO LOCAL SEM AUTORIZAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS, E O CAMINHO É EM MATA FECHADA.

Após cerca de uma hora e meia de caminhada, subindo cerca de 450 metros, chegamos ao topo do morro, onde há bela vista para o vale do Rio da Luz, em Jaraguá do Sul, e encontramos os dois marcos de concreto. Distantes cerca de 20 metros um do outro, cada um possui uma placa de bronze no centro, onde se lê CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA – MARCO DE REFERÊNCIA – NÃO DESTRUIR – PROTEGIDO POR LEI.

Marco A (foto: Ivan Blumenschein)
Marco B (Foto: Ivan Blumenschein)

Após o retorno, uma pesquisa aprofundada em arquivos do IBGE e de outras instituições revelou informações muito interessantes: apesar de instalados pelo exército, os marcos pouco têm de militar; na realidade, são peças do primeiro Sistema Geodésico de Referência do Brasil, que teve enorme importância para o país por várias décadas.

O que é um Sistema Geodésico de Referência?

A localização de qualquer ponto na superfície da Terra é feita com base em um sistema de coordenadas: Latitude (de Norte a Sul) e Longitude (de Leste a Oeste).

Atualmente, redes de satélite (GPS) permitem que se obtenha a localização de qualquer ponto imediatamente, mas antigamente não era assim.


Para obtenção das coordenadas de um determinado ponto, era necessário um trabalhoso levantamento astronômico, utilizando posições dos astros. E, mesmo assim, havia grande margem de erro em cada medição individual.

Para minimizar esses erros e permitir uma base comum de coordenadas em uma região ou país, a solução era estabelecer uma rede de pontos com coordenadas conhecidas e referenciados uns nos outros — um Sistema de Referenciamento.

Para isso, um ponto arbitrário era escolhido como referência inicial, suas coordenadas eram levantadas astronomicamente e pontos adicionais tinham estabelecidas as coordenadas utilizando o primeiro como referência, num processo conhecido como triangulação, usando instrumentos óticos, como o teodolito, e cálculos matemáticos.

Princípio da triangulação: se as coordenadas do ponto A forem conhecidas, e forem medidos a distância AB, o azimute (ângulo com o Norte) de AB e medidos todos os ângulos, pode-se calcular as coordenadas dos pontos B, C e D.

Assim, era constituída uma “malha” de pontos com latitude e longitude determinadas, todos utilizando uma mesma referência, garantindo maior precisão relativa entre eles e criando uma base mais confiável para todas as atividades de mensuração e cartografia.

Qual a importância de um Sistema Geodésico de Referência?

Quem já viu mapas antigos de navegação, percebe que os continentes parecem deformados em relação ao formato com que os conhecemos hoje. Isso ocorria porque os navegadores iam estimando as direções e distâncias percorridas, mas os erros nessas medidas iam se acumulando. No final, as distorções eram enormes.

Antigo mapa de navegação: as distorções por falta de referencial e erros cumulativos são óbvias

Imagine construir uma estrada onde as duas pontas não se encontram; fronteiras incertas entre municípios, estados ou propriedades; navegar em um navio ou avião sem informações precisas de direção ou distância. Esses são alguns exemplos da necessidade de um Sistema de Referenciamento em um país.

Em resumo, serve para que todos os mapas e medidas se encaixem, “falem a mesma língua”. É imprescindível para obras de engenharia, agricultura, agrimensura, exploração do solo, navegação e tantas outras empreitadas humanas.

O primeiro SGR do Brasil

Na década de 1940, o Conselho Nacional de Geografia (antecessor do IBGE) assumiu a empreitada de criar um sistema único de coordenadas para o país, aumentando muito a precisão de todos os mapas e todas as referências geográficas do Brasil, permitindo que todas as atividades exemplificadas fossem realizadas de forma muito mais exata, segura e ágil.
Foi determinado um ponto inicial, que seria utilizado como base para esse sistema. O local escolhido foi Córrego Alegre, em Minas Gerais, e suas coordenadas foram determinadas astronomicamente com a maior precisão possível. A partir deste primeiro ponto, outros pontos seriam determinados, com o auxílio de instrumentos óticos de medida (teodolitos), por equipes varrendo os estados do Brasil.
Cada novo ponto se apoiava na localização de pontos anteriores, que precisavam ser visíveis do ponto novo, no processo de triangulação. Por esse motivo, cumes de morros eram muito utilizados. Cada ponto desses recebe o nome de Vértice de Triangulação.

Foram marcados centenas de pontos no país, cobrindo milhares de quilômetros; pontos anteriores sempre apoiando os próximos. Essa malha de pontos unida aos modelos matemáticos escolhidos, formando um sistema referencial, recebeu o nome de Datum Córrego Alegre.

Os cálculos envolvidos para estabelecimento das coordenadas de cada ponto eram bastante complexos, pois precisavam considerar a forma real da Terra (“geóide”) e eram executados manualmente (sem auxílio de computadores, à época).

Datum Córrego Alegre: cada ponto é um “Marco”

O Vértice de Triangulação da Rota do Enxaimel

Pesquisando arquivos do IBGE, pudemos apurar que o marco na Rota do Enxaimel foi instalado no topo do morro em 15 de dezembro de 1948, e a rigor fica em Jaraguá do Sul (e não em Pomerode), logo após o limite entre municípios. É o vertice de número 112 do Datum Córrego Alegre sendo, portanto, um dos primeiros marcos instalados na criação do primeiro SGR brasileiro.

Vértice de Triangulação 112 (seta azul) em diferentes níveis de zoom — um dos primeiros marcos da malha planimétrica do Brasil

Obtivemos a planilha com dados de todos os Vértices de Triangulação do Brasil, e podemos ver que é um dos marcos mais antigos. Confira a planilha na íntegra aqui.
Obtivemos também o arquivo com os dados deste marco, com observações feitas na instalação em 1948 e em uma visita subsequente em 1959, veja aqui. O morador local mencionado provavelmente é um membro falecido da família Schumacher.

Advento do GPS e ocaso do sistema clássico

Com o surgimento das redes de satélite GPS, deixou de ser necessário fazer esse processo tão complexo de triangulações sucessivas.

Mas, por ter sido usado por várias décadas, o Datum Córrego Alegre ainda está presente em muitos documentos das décadas de 1950 a 1980. Por isso, continua frequente a necessidade de converter coordenadas do sistema antigo para o sistema novo.

Apesar de todas as dificuldades de realizar o levantamento de coordenadas da forma tradicional, o mapa acima, que indica os erros nos pontos do Datum Córrego Alegre comparados à medição atual por GPS, aponta desvios na faixa de 10 metros — uma precisão impressionante para um sistema que atravessou o país subindo morros e tomando medidas, apoiando cada coordenada na coordenada anterior.

Conclusão

O Vértice de Triangulação da Rota do Enxaimel é um pequeno bloco em uma estrutura gigantesca e invisível que balizou cada mapa, cada medida, cada estrada do país durante muitos anos.

Sabendo disso, aumentam os motivos para que seja respeitado e preservado.

E, se o mistério do Marco foi elucidado, permanece sua aura mágica, por contar a história de uma empreitada tão complexa e demandante que pareceria impossível de realizar nos dias atuais.